Uma foto divulgada pelo site oficial do líder supremo do Irã mostra o aiatolá Ali Khamenei (direita) durante uma reunião com o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva em Teerã em 16 de maio de 2010. (AFP / Foto de arquivo)
A relação entre a teocracia do Irã e as ideologias comunistas e socialistas ganhou renovada atenção devido à recente escalada do conflito entre Irã e Israel, que intensificou debates geopolíticos globais. No Brasil, setores da esquerda, incluindo partidos como o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), frequentemente expressam apoio ao Irã, enquadrando-o como uma força anti-imperialista contra os Estados Unidos e Israel. Essa postura, no entanto, é marcada por contradições, já que o regime iraniano, fundamentado em uma teocracia xiita, historicamente reprime movimentos socialistas e comunistas, considerando-os ameaças à sua ideologia islâmica. Este artigo analisa a complexa relação do Irã com o comunismo e o socialismo, desde a Revolução Iraniana de 1979 até os dias atuais, e explora a paradoxal defesa do Irã por parte da esquerda brasileira, destacando a incoerência entre o apoio a um regime que persegue ideologias de esquerda e os princípios socialistas defendidos no Brasil.
Contexto Pré-Revolução: Comunismo e Socialismo no Irã
Antes da Revolução Iraniana, o Irã era governado pela monarquia do xá Mohammad Reza Pahlavi, um regime pró-Ocidente e alinhado aos Estados Unidos. Durante esse período, o Partido Tudeh, fundado em 1941, era a principal organização comunista no país. Inspirado pela União Soviética, o Tudeh defendia a luta de classes, a nacionalização do petróleo e a oposição ao imperialismo ocidental, o que o tornava popular entre intelectuais, trabalhadores e setores da classe média.
No entanto, o Tudeh enfrentou forte repressão. Em 1953, após o golpe apoiado pela CIA que derrubou o primeiro-ministro Mohammad Mossadegh, o partido foi banido, e seus líderes foram presos ou exilados. Apesar disso, o Tudeh continuou a operar clandestinamente, mantendo influência em movimentos sindicais e estudantis. Além do Tudeh, outros grupos de esquerda, como o Organização dos Guerrilheiros Fedayeen do Povo Iraniano (OIPFG), adotaram uma abordagem mais radical, combinando marxismo com táticas de guerrilha contra o regime do xá.
Durante os anos 1970, a insatisfação com o xá cresceu devido à desigualdade econômica, à repressão política e à ocidentalização forçada. Comunistas e socialistas uniram-se a outros grupos opositores, incluindo islamistas liderados por Khomeini, em uma coalizão ampla contra a monarquia. Essa aliança temporária foi crucial para o sucesso da revolução, mas logo se revelou frágil.
A Revolução Iraniana de 1979: Aliança e Traição
A Revolução Iraniana de 1979 foi um movimento heterogêneo que reuniu islamistas, comunistas, socialistas, liberais e nacionalistas. O Partido Tudeh e outros grupos de esquerda desempenharam um papel significativo, mobilizando trabalhadores e organizando greves, especialmente na indústria petrolífera, que paralisaram a economia do xá. No entanto, Khomeini, com seu carisma e apoio popular, emergiu como o líder incontestável do movimento.
Após a queda do xá em fevereiro de 1979, as tensões entre islamistas e a esquerda começaram a surgir. Os comunistas e socialistas defendiam um governo secular, a redistribuição de riqueza e a nacionalização completa dos recursos, enquanto Khomeini e seus seguidores buscavam estabelecer uma teocracia baseada na lei islâmica (sharia). Apesar disso, o Tudeh inicialmente apoiou Khomeini, acreditando que ele representava uma frente anti-imperialista contra os Estados Unidos.
Essa aliança durou pouco. Em 1980, com a consolidação do poder pelos islamistas, o regime começou a reprimir grupos de esquerda. A guerra Irã-Iraque (1980-1988) serviu como pretexto para intensificar a repressão, com o governo acusando comunistas de colaborarem com o inimigo (o Iraque, então apoiado pela URSS em alguns momentos). Em 1983, o Partido Tudeh foi oficialmente banido, e milhares de seus membros foram presos, torturados ou executados. Outros grupos de esquerda, como o OIPFG e o Mojahedin-e-Khalq (MEK), que combinava islamismo e marxismo, também enfrentaram perseguição implacável.
Um dos episódios mais sombrios ocorreu em 1988, quando o regime executou milhares de prisioneiros políticos, muitos deles comunistas e socialistas, em prisões como Evin. Essas execuções, ordenadas por Khomeini, são conhecidas como o “massacre de 1988” e permanecem um símbolo da repressão brutal contra a esquerda no Irã.
Relação com Países Comunistas Durante a Revolução e Após
Durante a Guerra Fria, o Irã revolucionário manteve uma relação ambígua com países comunistas. A União Soviética, principal potência comunista, inicialmente viu a revolução como uma oportunidade para enfraquecer a influência dos EUA no Oriente Médio. No entanto, o antiamericanismo de Khomeini não se traduziu em alinhamento com Moscou. O regime iraniano rejeitava tanto o capitalismo ocidental quanto o ateísmo marxista, adotando a doutrina do “Nem Leste, Nem Oeste, Apenas a República Islâmica”.
A URSS forneceu apoio logístico e militar limitado ao Irã durante a guerra contra o Iraque, mas as relações nunca foram calorosas. Khomeini desconfiava das intenções soviéticas, especialmente após a invasão do Afeganistão em 1979, que colocou a URSS em conflito com movimentos islâmicos apoiados pelo Irã. Outros países comunistas, como a China, mantiveram relações pragmáticas com o Irã, focadas em comércio e interesses estratégicos, mas sem laços ideológicos profundos.
Após o colapso da URSS em 1991, a relação do Irã com países comunistas ou socialistas, como Cuba, Venezuela e Coreia do Norte, passou a ser guiada por interesses anti-imperialistas e oposição aos EUA. Por exemplo, o Irã e a Venezuela, sob Hugo Chávez e Nicolás Maduro, desenvolveram laços estreitos, baseados na exportação de petróleo e na retórica antiamericana. No entanto, essas parcerias são mais pragmáticas do que ideológicas, já que o Irã prioriza sua identidade islâmica acima de qualquer solidariedade socialista.
A Esquerda Brasileira e a Defesa do Irã: Uma Contradição Ideológica
No Brasil, partidos de esquerda como o PT, PCO, PSOL e o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) frequentemente expressam solidariedade ao Irã, especialmente em contextos de conflitos com Israel ou os Estados Unidos. Essa postura ganhou destaque em 2025, com a escalada da tensão entre Irã e Israel, marcada por ataques diretos e retaliações, como os bombardeios iranianos em resposta a ações israelenses no Líbano e na Síria. A esquerda brasileira, historicamente alinhada com causas anti-imperialistas, vê o Irã como um contrapeso às potências ocidentais, particularmente os EUA, que apoiam Israel.
Essa defesa, no entanto, é profundamente contraditória. O regime iraniano, desde 1979, persegue sistematicamente comunistas e socialistas, como evidenciado pela repressão ao Partido Tudeh e pelo massacre de 1988. A teocracia xiita rejeita ideologias seculares, considerando-as incompatíveis com a sharia, e promove políticas que contrariam valores de esquerda, como a repressão a sindicatos, a censura a movimentos feministas e a perseguição a minorias religiosas e sexuais.
No Brasil, o apoio ao Irã começou a se consolidar durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), que buscou fortalecer laços com países do “Sul Global”, incluindo o Irã. Em 2010, o Brasil, sob Lula, mediou um acordo nuclear com o Irã ao lado da Turquia, desafiando as sanções ocidentais. O PT e outros partidos de esquerda celebraram essa iniciativa como um gesto de soberania contra o imperialismo. O PSOL, por sua vez, frequentemente condena as ações de Israel no Oriente Médio, alinhando-se ao Irã em fóruns internacionais, como a Organização dos Estados Americanos (OEA) e a ONU.
Essa posição ignora a repressão iraniana contra a esquerda. Durante a Revolução Iraniana, o regime de Khomeini eliminou aliados comunistas que ajudaram a derrubar o xá, traindo a coalizão revolucionária. O massacre de 1988, no qual milhares de prisioneiros políticos foram executados, é um exemplo gritante dessa hostilidade. A contradição é ainda mais evidente quando se considera que a esquerda brasileira defende pautas como direitos trabalhistas, igualdade de gênero e liberdade de expressão, que são sistematicamente violadas pelo regime iraniano.
A defesa do Irã por parte da esquerda brasileira é, portanto, “esquisita” porque prioriza uma solidariedade geopolítica anti-imperialista em detrimento da coerência ideológica. Enquanto partidos como PT e PSOL criticam o autoritarismo em outros contextos, sua relutância em condenar as violações de direitos humanos no Irã revela uma seletividade que enfraquece sua credibilidade. Essa postura é frequentemente criticada por setores progressistas no Brasil, que apontam a necessidade de uma análise mais crítica do regime iraniano, reconhecendo sua repressão contra as mesmas ideologias que a esquerda brasileira diz defender.
A Visão Atual do Irã sobre Comunismo e Socialismo
Nos dias atuais, o regime teocrático do Irã continua a reprimir movimentos comunistas e socialistas dentro do país. O Partido Tudeh, embora ainda ativo no exílio, tem influência limitada no Irã devido à vigilância estatal e à censura. Outros grupos de esquerda operam na clandestinidade, focando em questões como direitos trabalhistas, desigualdade econômica e a separação entre religião e Estado. No entanto, qualquer tentativa de organização é rapidamente reprimida pelas forças de segurança, como a Guarda Revolucionária Islâmica (IRGC).
A visão oficial do regime sobre comunismo e socialismo é profundamente negativa. Essas ideologias são consideradas seculares, ateístas e contrárias aos princípios da Revolução Islâmica. O governo frequentemente acusa ativistas de esquerda de serem agentes de potências estrangeiras, uma tática usada para deslegitimar dissidentes. Além disso, a crise econômica no Irã, agravada por sanções internacionais e má gestão, tem alimentado protestos populares, mas o regime reprime qualquer movimento que adote uma retórica socialista ou comunista.
No cenário internacional, o Irã mantém relações com países de orientação socialista, como Venezuela, Cuba e Síria, mas essas alianças são baseadas em interesses geopolíticos, como oposição aos EUA e à Israel, em vez de afinidade ideológica. A China, embora não seja mais um país estritamente comunista, é um parceiro econômico crucial para o Irã, fornecendo investimentos e comprando petróleo iraniano apesar das sanções.
Conclusão
A relação do Irã com comunismo e socialismo é uma história de alianças táticas, repressão brutal e desconfiança ideológica. Durante a Revolução Iraniana, comunistas e socialistas desempenharam um papel importante na derrubada do xá, mas foram rapidamente marginalizados e perseguidos pelo regime teocrático de Khomeini. Hoje, o Irã reprime qualquer movimento de esquerda internamente, enquanto mantém parcerias pragmáticas com países socialistas no exterior. A defesa do Irã por setores da esquerda brasileira, como PT e PSOL, especialmente no contexto do conflito com Israel, revela uma contradição profunda, já que o regime iraniano persegue as mesmas ideologias que esses partidos dizem defender. Essa postura seletiva da esquerda brasileira destaca a complexidade de alinhamentos geopolíticos e a necessidade de uma análise mais crítica das dinâmicas do poder no Oriente Médio.
Para os interessados em geopolítica, entender essa relação oferece uma perspectiva única sobre as tensões entre ideologia e pragmatismo, tanto no Irã quanto no Brasil. Enquanto o Irã enfrenta crises internas e conflitos externos, como a guerra com Israel, a esquerda brasileira deve refletir sobre as implicações de apoiar um regime que contradiz seus próprios valores, promovendo um debate mais nuançado sobre solidariedade internacional e coerência ideológica.
Mais detalhes: Como funciona a complexa estrutura de poder do Irã – BBC News Brasil / Irã: crise econômica, ditadura teocrática e o papel da esquerda – PCB – Partido Comunista Brasileiro / Três vezes em que o governo Lula apoiou a teocracia do Irã / Irã, a história recente de uma Revolução – Vermelho / Politics of Iran – Wikipedia / A vida das minorias religiosas na teocracia islâmica do Irã | Exame / Jadaliyya – Leituras Essenciais sobre o Socialismo e o Comunismo Iranianos (por Eskandar Sadeghi-Boroujerdi) / COMUNISMO i. Na Pérsia até 1941 – Encyclopaedia Iranica / Val Moghadam, socialismo ou anti-imperialismo? A Esquerda e a Revolução no Irã / Tudeh Party of Iran – Wikipédia / Partido Comunista dos Trabalhadores do Irã – Wikipédia / The Iranian Revolution—Forty Years On – World Socialist Web Site / Iranian Revolution | Summary, Causes, Effects, & Facts | Britannica / Iran: Revolution, War and Counterrevolution / O antiamericanismo do PT e o apoio aos aiatolás do Irã – Crusoé / Why Brazil matters to Iran’s efforts to counter international isolation | Arab News