Hamas e Gaza: Eleições, Conflitos e Poder
Entendendo o Surgimento e a Atuação de um dos Principais Grupos no Conflito Israel-Palestina
Como analista de relações internacionais, escrevo este texto em um momento crítico da história do Oriente Médio. Yahya Sinwar, líder do Hamas em Gaza e um dos principais arquitetos do pior ataque da história de Israel (07 de outubro de 2023), foi um dos alvos mais procurados por Israel até a data de hoje. Há poucas horas, a IDF confirmou a neutralização de Sinwar, e, por isso, antecipo meu texto sobre este grupo.
Olhando para a complexidade do Oriente Médio, poucos grupos têm tanta influência e despertam tantas controvérsias quanto o Hamas. Para entender de onde veio e como se tornou um dos protagonistas no conflito Israel-Palestina, precisamos explorar a história do Hamas, suas ramificações e sua visão de mundo. Afinal, como um movimento começou e, em menos de três décadas, se tornou o governo de Gaza? Vamos nos aprofundar nesse cenário.
As Origens do Hamas
O Hamas (Movimento de Resistência Islâmica) surgiu oficialmente em 1987, durante a Primeira Intifada, um levante palestino contra a ocupação israelense na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. No entanto, suas raízes estão em algo ainda mais antigo: a Irmandade Muçulmana. A Irmandade, que surgiu no Egito na década de 1920, inspirou o Hamas com sua visão de um governo e sociedade guiados pelos princípios islâmicos. Então, não é surpreendente que o Hamas, em seus primeiros dias, tenha se estabelecido com um forte apelo religioso.
O grupo foi fundado por Sheikh Ahmed Yassin, que era visto por muitos como uma figura carismática e respeitada entre os palestinos. Desde o início, o Hamas foi diferente de outros movimentos palestinos: enquanto a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) adotava uma abordagem secular, o Hamas via a luta pela Palestina como uma obrigação religiosa. Para eles, era uma jihad, ou guerra santa, contra a ocupação israelense.
A Ideologia e a Visão de Mundo do Hamas
Desde sua fundação, o Hamas deixou claro que seu objetivo principal era a “libertação” de toda a Palestina histórica, o que inclui o atual território de Israel. Essa visão coloca o grupo em rota de colisão direta com a ideia de uma solução de dois estados, defendida por muitos na comunidade internacional.
O Hamas também traz consigo uma visão do mundo baseada na interpretação da lei islâmica. Para eles, a luta contra Israel não é apenas uma questão de território, mas também um conflito religioso. Esse ponto de vista é reforçado na carta fundacional do grupo, de 1988, que faz várias referências à luta contra os judeus e cita teorias conspiratórias. Desde então, o Hamas passou por algumas revisões, tentando se distanciar dessas declarações, mas a base ideológica continua presente. E isso levanta a pergunta: seria possível um acordo de paz duradouro com uma organização que tem essa visão em sua essência?
Conflitos e Ascensão ao Poder
Desde seu início, o Hamas sempre esteve em conflito com Israel. Nos anos 1990, o grupo ficou conhecido por realizar ataques suicidas, que visavam tanto militares quanto civis israelenses. Esses ataques ajudaram a consolidar a reputação do Hamas como um grupo violento, mas também aumentaram seu prestígio entre palestinos que viam pouca esperança nos processos de paz liderados pela OLP.
Em 2006, o Hamas deu um passo que surpreendeu muitos analistas ao participar das eleições parlamentares palestinas e, para surpresa de muitos, venceu. A vitória do Hamas nas eleições o colocou em um conflito direto com o Fatah, o principal partido da OLP. Esse conflito culminou, em 2007, em uma violenta divisão entre os dois grupos, com o Hamas assumindo o controle da Faixa de Gaza enquanto o Fatah mantinha o controle da Cisjordânia.
Desde então, o Hamas governa Gaza de forma autônoma, embora a Cisjordânia e Gaza sejam tecnicamente parte da mesma Autoridade Palestina. Esse governo trouxe alguns desafios, principalmente o bloqueio imposto por Israel e o Egito, que controlam as fronteiras e limitam a entrada de bens. Com o controle de Gaza, o Hamas se viu em uma posição que mistura gestão civil e resistência militar, mantendo escolas, hospitais e outros serviços, mas também operando milícias e realizando ataques contra Israel.
A Ascensão do Hamas ao Poder na Faixa de Gaza: Eleições, Conflitos e Consolidação
Para entender como o Hamas se consolidou no poder na Faixa de Gaza, precisamos voltar ao início dos anos 2000, quando o grupo começou a ganhar popularidade em meio à Segunda Intifada, um período marcado por ataques e confrontos intensos entre palestinos e israelenses. O Hamas, já conhecido por sua atuação militar, aproveitou o cenário para fortalecer sua presença política e ganhar o apoio de uma população palestina cansada do domínio da Autoridade Palestina (AP) e do Fatah, partido rival.
O Contexto das Eleições de 2006
As eleições parlamentares de 2006 foram um ponto de virada na política palestina. Desde 1994, a Autoridade Palestina, liderada pelo Fatah de Yasser Arafat, controlava a Cisjordânia e a Faixa de Gaza, com apoio de países ocidentais. Porém, as negociações de paz promovidas pela AP com Israel não resultaram em avanços significativos, o que gerou frustração na população palestina. Esse contexto abriu espaço para o Hamas, que se posicionava como uma alternativa combativa ao Fatah, prometendo resistência ativa contra Israel e um governo mais alinhado aos valores islâmicos.
O Hamas construiu sua base política focando em duas frentes: a promessa de combater a corrupção, que era uma queixa comum sobre o governo do Fatah, e a execução de obras sociais, como a construção de escolas, hospitais e centros comunitários em Gaza. Dessa forma, o grupo conquistou uma boa parte da população, que via nessas ações um alívio para os problemas cotidianos e uma promessa de mudança.
A Vitória do Hamas e os Conflitos que se Seguiram
Quando o Hamas venceu as eleições parlamentares de 2006, recebendo 76 das 132 cadeiras no Conselho Legislativo Palestino, foi uma surpresa para muitos observadores internacionais. Essa vitória deu ao grupo o direito de formar o novo governo palestino. No entanto, a eleição desencadeou uma série de conflitos internos, pois o Fatah se recusava a ceder o controle das forças de segurança e da infraestrutura administrativa na Faixa de Gaza.
Esse período foi marcado por intensos confrontos entre as forças leais ao Fatah e os militantes do Hamas. Em meados de 2007, após meses de violência e tentativas fracassadas de co-governança, o Hamas lançou uma ofensiva militar e tomou o controle completo da Faixa de Gaza em junho daquele ano. O Fatah foi expulso da região, e a Autoridade Palestina, que governava na Cisjordânia, ficou separada do Hamas, que se consolidou como o governo efetivo em Gaza.
Ataques e Táticas Durante o Período Eleitoral
Durante o período eleitoral e nos meses que se seguiram, o Hamas utilizou uma combinação de campanhas militares e políticas para garantir seu domínio. Além dos confrontos diretos com o Fatah, o grupo lançou ataques contra Israel, inclusive com foguetes, em uma tentativa de demonstrar que mantinha a "resistência" ativa contra a ocupação. Esses ataques, contudo, resultaram em retaliações israelenses, intensificando ainda mais o ciclo de violência que caracteriza a região até hoje.
A vitória do Hamas nas eleições e o consequente controle da Faixa de Gaza também marcaram o início de um bloqueio rigoroso por parte de Israel e Egito, que fecharam as fronteiras para limitar o movimento de pessoas e bens. A Faixa de Gaza, então, se tornou uma área isolada, o que apenas aumentou a dependência da população local do Hamas para necessidades básicas e serviços. No entanto, essa dependência veio com um preço alto: o Hamas consolidou seu controle através de uma combinação de apoio social e repressão, eliminando oponentes e controlando aspectos da vida civil.
A vitória nas eleições de 2006 foi apenas o início de um processo que envolveu conflitos armados, isolamento e uma polarização ainda maior entre Gaza e a Cisjordânia. Hoje, a posição do Hamas em Gaza é resultado não apenas de sua popularidade inicial, mas também de suas táticas de controle e repressão. E, enquanto o grupo permanecer no poder, o futuro da região continuará sendo um dos maiores desafios para qualquer iniciativa de paz duradoura no conflito Israel-Palestina.
Ramificações e Apoio Internacional
O Hamas não age sozinho; possui diversos aliados e apoiadores no Oriente Médio. O Irã é um dos principais financiadores e fornecedores de armas, enquanto o Qatar tem oferecido apoio financeiro. Esse apoio permite ao Hamas sustentar sua estrutura em Gaza, apesar do bloqueio e das dificuldades econômicas. E por que essas nações apoiam o Hamas? Em grande parte, trata-se de uma questão de influência regional: ao apoiar o Hamas, esses países mantêm uma presença ativa no conflito Israel-Palestina e desafiam os interesses de Israel e dos EUA (já escrevemos sobre isso aqui).
Além do apoio direto, o Hamas possui algumas ramificações importantes. Uma delas é a ala militar, conhecida como Brigadas Izz ad-Din al-Qassam, que é responsável por grande parte das ações militares do grupo. Essas brigadas não são apenas soldados, mas também uma forma de manter a população de Gaza mobilizada e engajada no conflito. Com frequência, as brigadas lançam foguetes contra Israel, o que resulta em retaliações e ciclos de violência que afetam diretamente os civis em ambos os lados.
Direito Internacional e o Papel do Hamas
Aqui surge outra questão: como o Hamas se encaixa no direito internacional? Embora o Hamas tenha participado de eleições e controle Gaza, a comunidade internacional não o reconhece oficialmente como um governo legítimo. Além disso, muitos países, incluindo Estados Unidos e União Europeia, classificam o Hamas como uma organização terrorista devido aos seus ataques contra civis. Essa designação impacta a diplomacia e as negociações, dificultando ainda mais um caminho para a paz.
Além disso, o Hamas tem sido criticado por usar táticas que colocam a população civil em risco. Durante os confrontos, por exemplo, é comum que o grupo opere em áreas densamente povoadas, o que aumenta o número de baixas entre civis palestinos quando Israel responde aos ataques. Essas ações suscitam debates sobre as leis de guerra e o direito de resistência.
Por fim, o Hamas coloca uma série de questões difíceis: é possível negociar com um grupo que tem como objetivo a destruição de Israel? A existência do Hamas é um reflexo da falha dos processos de paz ou é um obstáculo insuperável para uma solução de dois estados?
Uma leitura muito importante pra quem quiser entender como funciona a filosofia do Hamas, é o livro "Filho do Hamas", escrito pelo filho de um dos líderes fundadores do grupo.
Leituras complementares:
Ascensão do Hamas na Palestina: pobreza e assistência social 1987 - 2006
O paradoxo do Hamas : democracia vs terrorismo?
A relação entre a violência do Hamas e a interpretação do Corão
Noticias sobre o ataque contra Israel:
https://www.hrw.org/pt/news/2024/07/17/october-7-crimes-against-humanity-war-crimes-hamas-led-groups
https://pt.wikipedia.org/wiki/Ataque_do_Hamas_a_Israel_em_2023